É um assunto polêmico principalmente para quem está afundado na Matrix. É difícil enxergar os tentáculos quando estamos completamente dependentes do sistema, pois nossas necessidades só são supridas por meio de elementos que fazem parte dele.
A pandemia mudou muita coisa no mundo e na minha vida também. Antes dela, meu trabalho era em uma repartição pública e eu programava sistemas o dia todo. Fui parar neste departamento após deixar a vida de sala de aula por meio de um laudo médico. Assim, ao comparar o serviço nos dois lugares, certamente que passar o dia no departamento era muito melhor do que na sala de aula. Em outra época, ficar na sala de aula era melhor que entregar cartas.
A pandemia permitiu o trabalho remoto a quem fosse do grupo de risco. Desse modo, pude fazer em casa a mesma coisa que fazia no trabalho presencial. Eu que defini meus horários, já que às vezes trocava o dia pela noite e cheguei a trabalhar nos fins de semana. Porém, eu podia acordar a hora que eu quisesse, diferente de quando era obrigado a ir todos os dias ao departamento.
Veio a vacinação, a diminuição dos casos e um decreto acabando com o home office. Assim, tive que retornar e é aí que começou a reflexão que é o título desse post: 'A prisão sem muros'. Nossa, foi dureza voltar a acordar às 5 da manhã pra dar tempo de se arrumar para ir ao trabalho. Outra coisa que pesou foi o fato de que o novo chefe não quis acordo com expediente corrido e eu tive que sair ao meio dia para o almoço e retornar às 14 horas.
Passei o dia me sentindo preso, pois não podia sair sem permissão e nem antes do fim do expediente. Nossa! Como eu não via isso antes? Já sei, antes o parâmetro de comparação era o inferno da sala de aula, mas agora, era simplesmente a minha casa, do meu jeito, na hora que eu quisesse e sem perturbação de outras pessoas. Desse modo, na minha mente, o trabalho presencial não tinha como competir com o remoto e eu passei o dia me sentindo péssimo, como um verdadeiro escravo. Só faltava a corrente no pé.
No fim da tarde voltei para casa e vi a velocidade com que o tempo passou. Mal tomei banho e jantei e já eram 21 horas. Fui dormir cedo com medo de perder a hora do trabalho. O tempo passou voando. Já era dia de novo e novamente tinha que enfrentar o trabalho. Algo no meu íntimo não estava aceitando aquela situação. Então, li novamente a portaria da Secretaria que disciplinava a nova rotina de trabalho e descobri que, por ser do grupo de risco, eu poderia continuar no trabalho remoto! Nossa, fiquei muito feliz e mandei mensagem pro chefe que disse que eu só seria liberado se apresentasse um laudo médico. Fui ao médico na hora do almoço e pedi o laudo que me classificou como obesidade grau 3. Apresentei-o à Junta Médica e eles autorizaram a minha liberação. Tive vontade de gritar de alegria, pois eu tinha me livrado do inferno. Iria continuar trabalhando do meu jeito, na hora que eu quisesse e onde eu quisesse. Eu estava livre dessa versão da prisão sem muros.
Ao parar para analisar o modo como a minha vida se desenrolou, constatei que estou numa prisão desde à infância. Os únicos momentos de liberdade real foram antes da escola, porque depois dela, eu passei a ficar trancado e completamente controlado durante um período do dia. Após terminar o 2º grau (atual Ensino Médio) pensei que teria paz, mas surgiu a necessidade de trabalhar e de ser independente. Consegui passar no concurso do Correio e agora estaria mais preso e controlado durante 8 horas por dia. No entanto, agora eu tinha uma motivação criada pelo próprio sistema: o recebimento de um salário que garantiria meu sustento e de minha família. A vida antes do Correio era dura e eu não queria voltar para ela e por isso me dedicava ao máximo. Porém, sentia que tinha algo errado, algo que não sabia o que era e nem como explicar. Aqui e acolá eu tinha ataques de raiva, principalmente após um dia de entregas debaixo do sol quente. Eu entregava mais rápido que podia tentando fugir do sol. Eu só queria terminar logo e ir para casa. O chefe achava que minha irritação era falta de namorada e não o aprisionamento e o sofrimento do trabalho e eu também não conseguia enxergar. Tentávamos suavizar a realidade nos fins de semana com bebedeiras, mas na segunda, o mundo real voltava com mais dureza ainda. Eu sentia muita raiva, mas não conseguia entender porquê.
No início era o dia todo, mesmo que não tivesse nada para fazer. Bati o pé e sugeri que após a entrega todos pudessem ir para casa e felizmente eles aceitaram. O meu distrito era o maior e eu fiz de tudo para diminuí-lo. Até que um cara falou: rapaz, pelo visto tu quer ficar sem entregar nada, heim. Nossa! Ele tinha adivinhado o meu pensamento. Ainda era pouco. Eu sentia que estava vendendo o meu tempo muito barato, mas eu nem sabia como expressar isso e ninguém entenderia, pois pra todo mundo, o que valia era receber no fim do mês.
Surgiu o concurso para professor. O salário era maior e o tempo de trabalho menor, pois era só um expediente. Fiz, passei e assumi. No início eram mil maravilhas, pois era melhor do que o emprego anterior, embora fosse apenas mais uma forma diferente da prisão sem muros. A rotina de trabalho incluía reuniões, desfiles de 7 de setembro no fim de semana, correção de trabalhos e provas em casa...Mesmo assim eu achava melhor porque estava na sombra e com mais tempo sobrando. Até hoje tenho alunos dessa época que são verdadeiros amigos. No entanto, as coisas ruins foram começando a aparecer, como alunos indisciplinados e o que era bom também foi se tornando péssimo, como desfilar em pleno domingo de 28 de setembro - o aniversário da cidade - em troca de apenas um dia de aula. Eu achava uma tremenda injustiça, pois no correio, se trabalhasse no fim de semana, a diária era o dobro. Mas ninguém me ouvia.
Então, eu comecei a fazer de tudo para sair da sala de aula até o ponto de pegar um laudo psiquiátrico que foi aceito e então fui para o departamento de informática. Era apenas mais uma faceta da prisão sem muros, mas era melhor do que dar aula em escola pública. Contudo, após experimentar o home office, senti que tudo o que o sistema construiu foi para me aprisionar, me manter sem tempo para me dedicar ao que realmente importa para mim e só enxergar isso perto do fim da vida. Felizmente, graças à COVID-19 eu pude refletir sobre isso e compreender que nada é mais importante do que o meu tempo e tenho que vendê-lo caro. Tudo porque dinheiro e bens materiais podem ser recuperados, mas o tempo não volta e uma vez que tirem ele de você, ninguém pode devolvê-lo. Ainda bem que sinto que todo o tempo que retiraram indevidamente de mim já me foi devolvido com juros e correção.
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