domingo, 6 de novembro de 2022

O inferno da sala de aula

Resolvi refletir sobre o quanto a experiência da sala de aula foi péssima. Falta de aviso não foi, pois todo mundo me questionava se essa era a escolha certa. Afinal, eu estava nos Correios há 10 anos e eles sabiam que o meu perfil não era adequado para lidar com quem não quer estudar. Vários me disseram 'rapaz, tu tem certeza? Hoje aluno não quer mais nada.' Mas eu dizia que também não queria nada. Falava isso sem entender a dimensão do que me aguardava e jamais pensei que tudo pudesse ser mil vezes pior do que eu imaginava.


Para ser contratado pelo estado eu teria que pedir demissão dos Correios e foi o que fiz. Ainda fui a Porto Velho assinar a recisão. Senti uma angústia tremenda durante o dia todo. Então me questionei se realmente era a escolha certa. Mas eu tinha feito Letras-Português, passado em um concurso público para professor efetivo e deveria aproveitar a oportunidade. Hoje entendo que aquela sensação não era gratuita. Era algo no meu íntimo dizendo que eu enfrentaria coisas terríveis.


Recebi o termo de posse e escolhi ser lotado em uma escola de ensino médio porque acreditava que fosse mais fácil lidar com adolescentes do que com crianças. No início foi até mais fácil do que eu imaginava. Não havia planejamento e as reuniões pedagógicas eram mínimas. Porém, tinha algo terrível que só hoje consigo perceber, pois as coordenadoras e a diretora não davam feedback do meu trabalho e para mim tudo estava indo bem. Cheguei até a pensar que não era tão ruim quanto haviam me dito. 


Eu dava aula pela manhã e tinha a tarde livre e estava ganhando um pouco mais do que no Correio. Então, pensava que minha vida tivesse melhorado.


Chegou o fim do ano e eu pensava que continuaria na escola. Recebi uma ligação e era a diretora me dizendo pra ir buscar a minha devolução. Essa palavra era nova para mim e eu não entendia o que estava acontecendo. Chegando lá, ela disse que não havia turmas suficientes e que não poderia me manter na escola. Eu acreditei e fui para a secretaria de educação um pouco triste, pois eu gostava de lá. Havia sido um ano bom, já que não tinha sido ofendido nem por alunos, nem pela coordenação e nem pela direção. Como eu não tinha recebido feedback negativo, achava que meu trabalho tinha sido bom.


Escolhi outra escola também de ensino médio. Nela tinha planejamento quinzenal, reuniões pedagógicas ocasionais e até comemorações fora da escola. Tive sorte (ou azar, não sei) de pegar turmas boas. Eu dava aula sem precisar aumentar o tom de voz. Os alunos em todas as turmas ficavam em silêncio sem que eu precisasse dar nenhum tipo de ordem.  Nas aulas de Arte, fiz até pequenos filmes com a câmera da escola. Os alunos concordavam com tudo e contribuiam para que os projetos dessem certo. Todas essas coisas eram tão boas que novamente cheguei a pensar que todo mundo que havia me aconselhado a continuar no Correio estava completamente errado. Eu estava tendo só paz e até durante o fim de semana eu sentia vontade de que a segunda-feira chegasse logo para encontrar os alunos. Nossa! Foram dois anos maravilhosos.


Mas, no terceiro ano, eu peguei turmas complicadas e aí a ficha começou a cair. Certo dia, um aluno ficou gritando no pátio, imitando lobo no cio, mas eu não dei atenção porque ele estava fora da sala de aula e eu acreditava que discipliná-lo deveria ser papel da direção. Porém, a coordenadora não pensava assim e em vez de corrigi-lo, me disse para dar um jeito nele. Essa foi a minha primeira grande raiva. Uma sensação estranha tomou conta do meu corpo, um sentimento de revolta por ser culpado de algo que não tinha feito. Com muito custo, consegui fazê-lo parar de gritar e entrar na sala de aula. Dei prosseguimento ao trabalho achando que tudo que tinha acontecido tinha ficado lá.  Mas, ao chegar em casa,  comecei a sentir algo ruim que não entendia o que era e que não passava. No dia seguinte, uma série de coisas ruins começou a acontecer e eu passei a ver o que não via ou não levava a sério antes. 


Pela primeira vez a coordenadora me pediu para controlar a turma e eu, que até então havia evitado confrontar os alunos, comecei a fazer com medo de perder o emprego. Agora que percebo que foi o início do fim e que nada seria como antes. Geralmente eu deixava os alunos irem ao banheiro e não me estressava, mas depois que a coordenadora me deu aquele carão eu comecei a regular os alunos e isso era péssimo tanto para mim quanto para eles, pois eles não entendiam que eu tinha mudado por pressão da coordenação. Então, eu percebi que ali não era lugar para mim, pois eu não poderia viver por muito tempo dividido entre a preocupação com o conteúdo das aulas e a saidinha dos alunos para o banheiro.  Nessa hora eu percebi que dar aula é muito bom, como qualquer outra profissão que te deixem desenvolver, mas controlar a turma era péssimo. Só que não dá para separar uma coisa da outra e os melhores professores de escola pública não são os que sabem mais e sim os que melhor controlam as turmas. Pra completar, fui contratado em uma época em que o professor era simplesmente tratado como um cachorro, pois o aluno sempre tinha razão e era tratado como um rei. Definitivamente eu estava começando a me convencer a abandonar aquilo. Mas ainda não era o fim. Eu precisava ter absoluta certeza da negatividade daquele lugar, precisava ter certeza para poder tomar uma decisão definitiva.


Hoje eu vejo que nunca teve, não tem e jamais terá alguma possibilidade de adaptação àquele ambiente, pois eu defendo a liberdade do ser humano e aquele encaixotamento era contra esse princípio. Ficar regulando banheiro e forçando a ficarem sentados quando não queriam era desgastante, mas era só o começo do fim. 

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